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Exames Laboratoriais no Protocolo de Acidente Vascular Encefálico


ilustração de ave
Fonte: Dartmouth Undergraduate Journal of Science.

O Acidente Vascular Encefálico (AVE), conhecido popularmente como acidente vascular cerebral (AVC), é uma emergência médica caracterizada por uma interrupção súbita do fluxo sanguíneo cerebral, podendo levar à morte ou a sequelas neurológicas significativas (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2022). Os exames laboratoriais desempenham papel fundamental no diagnóstico diferencial, na identificação de causas reversíveis, no acompanhamento da evolução clínica e na definição do prognóstico (BAMFORD et al., 1991).

Diante da importância crescente de um diagnóstico precoce e preciso, os exames laboratoriais têm sido cada vez mais valorizados nas diretrizes clínicas nacionais e internacionais para o manejo do AVE. Este artigo tem como objetivo explorar e discutir, com base na literatura científica atual e nas normativas da ABNT, os principais exames laboratoriais utilizados na abordagem do AVE.

Definição e Classificação do Acidente Vascular Encefálico (AVE)

O AVE pode ser isquêmico ou hemorrágico. O isquêmico, mais comum, ocorre por obstrução de vasos sanguíneos cerebrais, enquanto o hemorrágico é resultado da ruptura de vasos, levando ao extravasamento de sangue no tecido cerebral (FEIGIN et al., 2017).

A classificação do AVE isquêmico pode ser feita segundo critérios do TOAST (Trial of Org 10172 in Acute Stroke Treatment), que leva em consideração a etiologia do evento, como cardioembolia, aterotrombose, lacunares, entre outros (ADAMS et al., 1993).


Importância dos Exames Laboratoriais no AVE

Os exames laboratoriais são imprescindíveis tanto no contexto do atendimento emergencial quanto na avaliação etiológica e no seguimento a longo prazo (BRASIL, 2019). Os principais objetivos dos exames são:

  • Confirmar ou excluir diagnósticos diferenciais (como hipoglicemia);

  • Identificar fatores de risco (dislipidemia, diabetes, coagulopatias);

  • Avaliar função renal e hepática antes do uso de contraste;

  • Detectar infecções ou inflamações sistêmicas.

Exames Laboratoriais na Avaliação do AVE

A avaliação laboratorial do paciente com suspeita de Acidente Vascular Encefálico (AVE) deve ser rápida, ampla e direcionada, considerando a heterogeneidade das causas e a necessidade de intervenções urgentes, como a trombólise venosa. A seguir, aprofunda-se a descrição dos principais exames utilizados.


Glicemia Capilar e Plasmática

A hipoglicemia (glicemia < 60 mg/dL) é uma condição que pode simular sintomas neurológicos focais, incluindo hemiparesia e distúrbios da fala. Por isso, é um dos primeiros exames solicitados no protocolo de atendimento a pacientes com déficit neurológico súbito (AMARAL; CARDOSO, 2020).

Além disso, níveis elevados de glicemia na fase aguda (hiperglicemia de estresse) estão associados a aumento do volume do infarto cerebral e pior prognóstico, principalmente em pacientes não diabéticos. Isso se deve à exacerbação da cascata isquêmica, aumento da permeabilidade da barreira hematoencefálica e formação de radicais livres (VOGEL et al., 2006).


Hemograma Completo

O hemograma fornece uma visão geral sobre o estado hematológico do paciente. Alterações frequentes no contexto do AVE incluem:

  • Leucocitose: Pode estar presente em resposta ao estresse inflamatório agudo. Porém, leucocitose com desvio à esquerda pode indicar infecção, como pneumonia aspirativa (comum em pacientes com disfagia).

  • Plaquetopenia: Plaquetas < 100.000/mm³ são contraindicação relativa à trombólise, por aumentar o risco de hemorragia intracraniana (BRASIL, 2019).

  • Policitemia: Aumento do hematócrito (> 50%) pode sugerir estados de hiperviscosidade, como na policitemia vera, aumentando o risco trombótico (HEMERA et al., 2015).


Coagulograma (TP, TTPa, RNI)

Esses exames são fundamentais para avaliar a integridade da via extrínseca e intrínseca da coagulação. São especialmente importantes para:

  • Excluir coagulopatias antes da trombólise;

  • Avaliar pacientes em uso de anticoagulantes como varfarina (avaliado pelo RNI);

  • Identificar distúrbios hereditários da coagulação, como hemofilia A ou B, nos casos de AVE hemorrágico em pacientes jovens.


Função Renal (Ureia, Creatinina) e Eletrolíticos

Creatinina e ureia avaliam a função renal, sendo necessárias antes da administração de contraste iodado em exames de imagem. A lesão renal aguda pode ocorrer na fase aguda do AVE devido à hipotensão ou uso de medicamentos nefrotóxicos.


Sódio: Hiponatremia é comum em pacientes com AVE, especialmente em infartos do sistema nervoso central que afetam o hipotálamo. A síndrome da secreção inapropriada de ADH (SIADH) é uma das principais causas (RAHMAN; FRANKLIN, 2008).


Potássio: Alterações nos níveis de potássio afetam a excitabilidade neuronal e podem agravar distúrbios de ritmo cardíaco, especialmente em pacientes com AVE cardioembólico.


Perfil Lipídico

O perfil lipídico completo (colesterol total, HDL, LDL e triglicerídeos) deve ser solicitado o mais precocemente possível, pois pode sofrer alterações na fase inflamatória do AVE. Valores elevados de LDL e triglicerídeos estão associados ao risco de aterosclerose, principal etiologia do AVE isquêmico aterotrombótico (NCEP, 2002).


Gasometria Arterial e Lactato

Esses exames são indicados principalmente quando o paciente apresenta rebaixamento do nível de consciência, hipóxia, acidose metabólica ou instabilidade hemodinâmica.

  • pH, pCO₂ e bicarbonato: Avaliam distúrbios respiratórios e metabólicos que podem mimetizar ou agravar sintomas neurológicos.

  • Lactato: Níveis elevados podem indicar hipóxia tecidual e são marcadores de prognóstico em casos graves (MARTINS et al., 2011).


Troponina, CK-MB e Eletrocardiograma

A troponina T pode estar elevada mesmo sem infarto agudo do miocárdio, especialmente em AVEs envolvendo estruturas autonômicas, como o tronco encefálico e a ínsula, que desencadeiam liberação catecolaminérgica intensa, levando a lesão miocárdica neurogênica (KASTRUP et al., 2002).

A associação entre AVE e eventos cardíacos é bidirecional. O ECG pode revelar arritmias, como fibrilação atrial, frequentemente associada a AVE cardioembólico.


Sorologias Infecciosas

Pacientes jovens com AVE criptogênico devem ser investigados para infecções que podem causar vasculite cerebral. Sorologias úteis incluem:

  • HIV (vírus da imunodeficiência humana)

  • VDRL (sífilis)

  • Hepatites B e C

  • Citomegalovírus, Epstein-Barr e Herpes simplex (em imunodeprimidos)


Autoanticorpos e Marcadores Imunológicos

Indicados em pacientes jovens, sem fatores de risco tradicionais, ou com história familiar sugestiva de doenças autoimunes. Os exames incluem:

  • FAN (fator antinuclear)

  • Anticorpos anticardiolipina

  • Anticoagulante lúpico

  • Anti-β2 glicoproteína

Esses marcadores ajudam no diagnóstico de síndrome antifosfolípide, lúpus eritematoso sistêmico, entre outras causas de trombofilias adquiridas (FONSECA et al., 2010).


Marcadores Inflamatórios: PCR e VHS

A proteína C reativa (PCR) e a velocidade de hemossedimentação (VHS) são úteis como marcadores inespecíficos de inflamação, mas podem sugerir processos infecciosos ou inflamatórios em andamento.

Estudos apontam que níveis elevados de PCR estão associados a maior risco de complicações, incluindo transformação hemorrágica do infarto e pior evolução clínica (HILL et al., 2005).


Testes Genéticos e Pesquisa de Trombofilias

Indicados em casos recorrentes de AVE isquêmico em pacientes jovens ou com história familiar. Testes incluem:

  • Mutação do fator V de Leiden

  • Mutação da protrombina (G20210A)

  • Níveis de proteína C, proteína S e antitrombina III

Embora não façam parte da investigação de rotina, esses exames ajudam a diagnosticar condições hereditárias de hipercoagulabilidade (SILVA et al., 2014).


Exames de Urina (EAS e Urina 24h)

Pouco utilizados em protocolos iniciais, mas úteis em alguns contextos específicos, como:

  • Proteinúria ou hematúria: Podem indicar nefropatias sistêmicas (vasculites, lúpus).

  • Dosagem de catecolaminas urinárias: Indicada na suspeita de feocromocitoma, uma causa rara de AVE hemorrágico por crise hipertensiva.


Abaixo, disponibilizamos um resumo de todos os exames em forma de tabela:

Exame

Finalidade Clínica

Glicemia

Excluir hipoglicemia, avaliar hiperglicemia de estresse

Hemograma

Detectar infecção, anemia, plaquetopenia

Coagulograma

Avaliar risco hemorrágico, uso de anticoagulantes

Função renal

Avaliar nefropatia, risco com contraste iodado

Eletrolíticos

Detectar distúrbios que afetam a função neurológica

Perfil lipídico

Avaliar risco aterotrombótico

Gases arteriais

Avaliar oxigenação e equilíbrio ácido-base

Troponina e CK-MB

Identificar infarto ou lesão miocárdica neurogênica

Sorologias

Diagnóstico de infecções vasculíticas

Autoanticorpos

Identificação de doenças autoimunes e trombofilias

PCR e VHS

Avaliar inflamação sistêmica

Trombofilias hereditárias

Diagnóstico etiológico em jovens

Exames de urina

Avaliar doenças sistêmicas associadas ao AVE

O uso racional e criterioso dos exames laboratoriais permite não apenas diagnosticar com maior precisão o AVE, mas também tratar causas subjacentes e evitar recorrências. A escolha dos exames deve levar em conta o tipo de AVE, o tempo de evolução e o perfil clínico do paciente.

Diretrizes nacionais e internacionais recomendam protocolos laboratoriais padronizados para pacientes com suspeita de AVE, como parte integrante do atendimento em unidades de AVC e pronto-socorro (BRASIL, 2019; AHA/ASA, 2018).


Considerações finais

A abordagem laboratorial no AVE é um componente essencial para o cuidado integral ao paciente. Sua utilização adequada contribui significativamente para o diagnóstico diferencial, definição do tratamento e avaliação prognóstica. O conhecimento dos exames indicados, suas limitações e implicações clínicas é fundamental para todos os profissionais envolvidos no atendimento ao paciente com AVE.


Referências

  • ADAMS, H. P. et al. Classification of subtype of acute ischemic stroke: definitions for use in a multicenter clinical trial. Stroke, Dallas, v. 24, n. 1, p. 35–41, 1993.

  • BRASIL. Ministério da Saúde. Protocolo de AVC Isquêmico Agudo. Brasília: Ministério da Saúde, 2019. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/. Acesso em: 28 abr. 2025.

  • CAPES, S. E. et al. Stress hyperglycemia and prognosis of stroke in nondiabetic and diabetic patients: a systematic overview. Stroke, Dallas, v. 32, n. 10, p. 2426–2432, 2001.

  • FEIGIN, V. L. et al. Global burden of stroke. Circulation Research, v. 120, n. 3, p. 439–448, 2017.

  • FONSECA, A. et al. Doenças autoimunes e acidente vascular cerebral: uma associação negligenciada. Revista Brasileira de Reumatologia, São Paulo, v. 50, n. 3, p. 239–248, 2010.

  • GOLDSTEIN, L. B. et al. Primary prevention of ischemic stroke: a statement for healthcare professionals from the Stroke Council of the American Heart Association. Stroke, Dallas, v. 32, n. 12, p. 280–299, 2001.

  • MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Atenção à Saúde. Diretrizes clínicas para o cuidado do AVC. Brasília: Ministério da Saúde, 2022.

  • NCEP. Expert panel on detection, evaluation, and treatment of high blood cholesterol in adults (Adult Treatment Panel III). Circulation, v. 106, n. 25, p. 3143–3421, 2002.

  • SIEGEL, G. et al. Basic neurochemistry: molecular, cellular and medical aspects. 7. ed. Philadelphia: Lippincott, 2007.

  • WEINER, I. D.; LEVY, M. The role of the kidney in acid-base balance. New England Journal of Medicine, v. 369, p. 1–10, 2013.

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