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Validação Lote a Lote em Casos de Efeito Matriz

A confiabilidade dos resultados emitidos por laboratórios de análises clínicas depende diretamente da robustez dos seus processos analíticos, incluindo a etapa de validação dos insumos utilizados, especialmente os reagentes e calibradores. Um dos principais desafios enfrentados nesse contexto é o chamado efeito matriz, que pode comprometer a exatidão e a precisão dos testes laboratoriais. A validação lote a lote, portanto, emerge como um procedimento essencial para assegurar que cada novo lote de reagente mantenha os níveis de desempenho estabelecidos na validação inicial do método.

equipamento com gráfico de levey-jennings

A Resolução da Diretoria Colegiada – RDC nº 786, de 15 de março de 2023, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), atualiza os requisitos técnicos para o funcionamento dos laboratórios clínicos no Brasil, estabelecendo parâmetros obrigatórios para a validação contínua dos métodos, bem como a verificação de desempenho a cada novo lote de reagente ou insumo crítico.

Paralelamente, normas internacionais como a ISO 15189:2022, que especifica requisitos para qualidade e competência em laboratórios clínicos, e a ISO/IEC 17025:2017, voltada para laboratórios de ensaio e calibração, também reforçam a necessidade de controle rigoroso em face das variações lotes de insumos, especialmente quando o efeito matriz está presente.

Este artigo discute em profundidade como implementar uma validação lote a lote eficaz em análises clínicas, com especial atenção ao impacto do efeito matriz e às diretrizes técnicas aplicáveis.

Fundamentos da Validação Lote a Lote

A validação lote a lote consiste na verificação do desempenho analítico de um novo lote de reagente, calibrador ou outro insumo crítico, antes de sua liberação para uso rotineiro no laboratório. Segundo o guia EP26-A da Clinical and Laboratory Standards Institute (CLSI), essa validação visa garantir que as variações entre lotes não comprometam os requisitos de qualidade estabelecidos na validação inicial do método.


A validação deve avaliar os seguintes parâmetros:

  • Precisão interlote (comparação de resultados entre lotes);

  • Exatidão (comparação com valor-alvo ou lote de referência);

  • Linearidade e sensibilidade analítica, quando aplicável;

  • Interferência e efeito matriz.


Em cenários onde o efeito matriz é conhecido ou potencial, torna-se imperativo adotar protocolos mais robustos para a validação lote a lote, com inclusão de amostras reais de diferentes perfis biológicos.

O Efeito Matriz nas Análises Clínicas

O efeito matriz refere-se à interferência causada por componentes da amostra (como proteínas, lipídios, anticoagulantes, entre outros) que afetam a medição analítica do analito de interesse. Esse fenômeno pode provocar viés sistemático, comprometendo tanto a sensibilidade quanto a especificidade do ensaio.

De acordo com a norma ISO 15189:2022, o laboratório deve identificar possíveis fontes de interferência, incluindo o efeito matriz, e implementar estratégias de mitigação. Isso se reflete diretamente na escolha de amostras para validação de lotes, que devem representar diferentes tipos de matrizes clínicas — soro, plasma com diferentes anticoagulantes, urina, entre outras.

O efeito matriz pode variar inclusive entre pacientes com diferentes condições fisiológicas ou patológicas, o que reforça a importância da seleção criteriosa de amostras para testes de validação.

Normas e Regulamentações Aplicáveis


RDC nº 786/2023 (ANVISA)

Esta resolução estabelece os critérios para o gerenciamento da qualidade nos laboratórios clínicos. Em seu artigo 19, ela especifica que toda mudança de lote de insumo crítico deve ser acompanhada por procedimento documentado de verificação de desempenho, especialmente quando houver risco de efeito matriz.


ISO 15189:2022

Essa norma define os requisitos para qualidade e competência em laboratórios clínicos. Destaca a obrigatoriedade de se realizar validações contínuas e controles interlotes de reagentes e calibradores. Enfatiza, ainda, a rastreabilidade metrológica dos resultados, exigindo verificações com materiais de referência apropriados.


ISO/IEC 17025:2017

Embora mais voltada para laboratórios de ensaio e calibração, essa norma pode ser utilizada como base complementar, especialmente nos processos de rastreabilidade, incerteza de medição e validação de métodos, aspectos que se aplicam também à verificação lote a lote.


CLSI EP26-A

Este guia técnico oferece uma abordagem detalhada para a avaliação de lotes de reagentes, incluindo diretrizes para seleção de amostras, número de replicatas e análise estatística dos resultados. É uma das fontes mais práticas para estruturação de protocolos internos de verificação de lote.

Metodologia para Validação Lote a Lote

A validação lote a lote é um processo sistemático que deve ser conduzido de forma padronizada, documentada e baseada em evidências estatísticas. Seu objetivo é assegurar que um novo lote de reagente, calibrador, controle ou qualquer insumo crítico utilizado em análises clínicas mantenha o mesmo desempenho do lote anterior ou do lote validado previamente, mesmo na presença de variações de matriz.

A seguir, são descritas as principais etapas da metodologia recomendada para esse tipo de validação.


Planejamento da Validação

O primeiro passo envolve o planejamento da validação, com definição clara dos seguintes pontos:

  • Qual o insumo que será avaliado (reagente, calibrador, controle etc.);

  • Qual o método analítico envolvido (enzimático, imunoensaio, turbidimétrico, etc.);

  • Quais os parâmetros que serão avaliados (exatidão, precisão, linearidade, interferência);

  • Quais os critérios de aceitação;

  • Quais tipos de amostras serão utilizados (controle interno, amostras reais de pacientes, materiais de referência).

Segundo a CLSI EP26-A, o número mínimo de amostras recomendadas para uma verificação lote a lote eficaz é de 5 a 10 amostras clínicas representativas, dependendo da criticidade do ensaio e da variabilidade esperada.


Seleção de Amostras Representativas

A escolha das amostras deve refletir a diversidade biológica e de matrizes normalmente processadas pelo laboratório. A ISO 15189:2022, seção 5.5.1, reforça a necessidade de usar materiais que simulem as amostras clínicas reais.


Tipos de amostras recomendadas:

  • Soro ou plasma de pacientes com perfis lipêmicos, hemolíticos e ictéricos (para avaliar interferências);

  • Amostras de pacientes com níveis baixos, médios e altos do analito;

  • Materiais de controle de qualidade interno (CQI) com valores esperados conhecidos.


Execução dos Ensaios

O novo lote deve ser testado simultaneamente ao lote anterior (ou a um lote validado de referência). As amostras selecionadas são analisadas em duplicata ou triplicata, conforme o tipo de ensaio, utilizando ambos os lotes. A análise deve ser feita no mesmo equipamento e preferencialmente na mesma sessão analítica, para minimizar variáveis externas.


Parâmetros principais a observar:

  • Precisão interlotes: a variação entre os resultados dos dois lotes para a mesma amostra;

  • Viés percentual: diferença entre o valor obtido com o novo lote e o valor com o lote anterior;

  • Concordância com faixa de referência ou valor esperado.


Análise Estatística dos Resultados

A análise estatística é fundamental para validar ou rejeitar o novo lote. Os seguintes testes são comumente aplicados:

a) Teste t pareado

Compara os resultados entre dois lotes para as mesmas amostras. É útil para detectar diferenças sistemáticas.


b) Gráfico de diferença de Bland-Altman

Identifica viés médio e limites de concordância entre os lotes.


c) Regressão linear de Passing-Bablok

Avalia a correlação entre os dois conjuntos de resultados, verificando proporcionalidade e viés constante.


d) Desvio percentual

ree

Valores de viés aceitáveis geralmente estão dentro de ±10%, mas isso pode variar conforme o ensaio.


Estabelecimento de Critérios de Aceitação

Os critérios de aceitação devem ser previamente definidos, de acordo com a natureza do ensaio, a criticidade do parâmetro e os requisitos normativos. Os critérios podem ser baseados em:

  • Requisitos de desempenho estabelecidos na validação inicial do método;

  • Tolerâncias analíticas da CLSI EP15-A3 e CLSI EP09-A3;

  • Critérios de aceitação da ISO 5725 (precisão e exatidão).


Exemplos práticos:

  • Desvio percentual ≤10%;

  • Coeficiente de variação (CV%) ≤ 5% para repetibilidade;

  • Correlação linear entre lotes r ≥ 0,98.


Registro, Documentação e Rastreabilidade

Toda a verificação lote a lote deve ser registrada de forma estruturada, com dados brutos, cálculos estatísticos, gráficos de comparação e conclusão técnica assinada por profissional qualificado (químico, biomédico, farmacêutico).

A documentação deve conter:

  • Código do novo lote e do lote anterior;

  • Data e responsável pela verificação;

  • Resultados obtidos e conclusão sobre liberação ou rejeição;

  • Ações corretivas, se necessário (por exemplo, recusa do lote ou solicitação de nova validação).


Ações em Caso de Não Conformidade

Quando o novo lote não atende aos critérios de aceitação, o laboratório deve:

  • Suspender o uso do lote em questão;

  • Comunicar o fabricante ou fornecedor;

  • Registrar a não conformidade conforme a RDC 786/2023, artigo 24;

  • Avaliar o impacto nos resultados liberados (se aplicável);

  • Realizar nova verificação com outro lote, se disponível.


Frequência da Verificação Lote a Lote

A verificação deve ser realizada:

  • Sempre que houver troca de lote de insumo crítico (reagentes, calibradores, controles);

  • Na introdução de novos kits, mesmo do mesmo fabricante;

  • Quando houver mudança de fornecedor ou formulação;

  • Quando houver suspeita de desvio de qualidade do produto.


Integração com Programas de Garantia da Qualidade

A verificação lote a lote deve ser integrada ao Programa de Garantia da Qualidade Interna do laboratório, em conformidade com os sistemas de gestão previstos na ISO 15189 e na ISO 9001, quando aplicável. Isso fortalece o compromisso com a melhoria contínua e com a segurança dos resultados liberados.

fluxograma de efeito matriz
Fluxograma de verificação de efeito matriz. Fonte: Autor

Considerações Adicionais

A validação lote a lote também pode ser impactada por outros fatores além do efeito matriz, como:

  • Mudança na procedência de matéria-prima dos reagentes;

  • Reformulação silenciosa por parte do fabricante;

  • Variações sazonais ou climáticas que afetam o transporte e armazenamento;

  • Alterações em calibrações automatizadas dos analisadores.


Por isso, mesmo quando não há suspeita de efeito matriz, o protocolo de validação deve ser seguido rigorosamente, com atenção especial à seleção das amostras e à análise estatística.


Relevância para Acreditações e Boas Práticas

Os programas de acreditação como DICQ/SBAC, PALC/SBPC-ML e CAP exigem documentação rigorosa da validação lote a lote. Durante auditorias, é comum que os avaliadores verifiquem:

  • A existência de protocolo padronizado;

  • Se foram incluídas amostras reais e controles;

  • Se a análise estatística foi aplicada adequadamente;

  • Como o laboratório trata as não conformidades.

A conformidade com essas exigências reforça a segurança do paciente e a confiabilidade dos resultados laboratoriais, além de atender aos critérios legais da RDC nº 786/2023.

Estratégias para Mitigação do Efeito Matriz

Embora o efeito matriz seja uma interferência analítica muitas vezes inevitável, ele pode ser identificado, controlado e minimizado por meio de ações sistemáticas no âmbito do controle de qualidade laboratorial. A seguir, apresentam-se estratégias práticas e técnicas de mitigação que podem ser incorporadas aos procedimentos operacionais padrão (POPs) do laboratório.


Uso de Materiais de Referência com Diferentes Matrizes

O uso de materiais de controle com diferentes composições de matriz (e.g., controles liofilizados, líquidos, sintéticos e humanos) permite avaliar o comportamento do método frente à variabilidade. A ISO 15189:2022, em sua seção 7.3.3, recomenda que o laboratório avalie a compatibilidade da matriz dos controles com a das amostras clínicas.


Validação Cruzada com Métodos Diferentes

Quando há suspeita de efeito matriz, o ideal é comparar o resultado com outro método analítico (e.g., imunoensaio versus HPLC). A discrepância pode revelar se o viés está relacionado ao reagente, ao instrumento ou à matriz.


Adoção de Protocolos de Diluição ou Extração

Em algumas situações, a diluição da amostra pode reduzir o impacto da interferência, como nos casos de lipemia severa. Alternativamente, técnicas de precipitação de proteínas ou extração por solventes podem ser utilizadas, desde que validadas.


Comunicação com Fabricantes e Notificações à ANVISA

Caso a interferência seja detectada e atribuída a falha no desempenho do insumo, o laboratório deve:

  • Notificar o fabricante formalmente;

  • Registrar no Sistema de Notificações da Vigilância Sanitária – Notivisa;

  • Manter a rastreabilidade de todas as ações e decisões.

Impactos na Acreditação Laboratorial

A validação lote a lote e a gestão do efeito matriz são pontos de auditoria relevantes nos principais programas de acreditação laboratorial no Brasil. Destacam-se os seguintes aspectos exigidos pelos sistemas de qualidade:


DICQ – Sistema Nacional de Acreditação da SBAC

O Manual de Requisitos do DICQ (versão 2023) especifica que o laboratório deve implementar um processo documentado de verificação de novos lotes de reagentes, calibradores e controles, incluindo:

  • Procedimento escrito;

  • Registro de resultados;

  • Plano de ação em caso de não conformidade.

A ausência desse controle pode configurar não conformidade maior em auditorias.


PALC – Programa de Acreditação de Laboratórios Clínicos (SBPC/ML)

O PALC estabelece que os laboratórios devem garantir a homogeneidade e a equivalência entre lotes, considerando todas as possíveis variações da matriz. A não identificação de interferência entre lotes pode comprometer a validade dos resultados.


ISO 15189:2022 e Certificações Internacionais

A ISO 15189 reforça a necessidade de que todas as modificações nos insumos críticos passem por avaliação técnica prévia, com foco na segurança do paciente. A rastreabilidade das validações é um pilar das auditorias de certificação e deve ser tratada com prioridade.

Considerações Finais

A validação lote a lote em análises clínicas, especialmente em contextos com risco de efeito matriz, é um instrumento essencial de controle de qualidade, garantindo que as mudanças nos insumos não comprometam a exatidão e confiabilidade dos resultados laboratoriais.

Este artigo apresentou fundamentos técnicos, metodologias práticas, exemplos reais e diretrizes regulatórias que norteiam a correta execução desse processo. Dentre os principais pontos destacados, ressaltam-se:

  • A importância da seleção criteriosa de amostras;

  • A utilização de análises estatísticas robustas;

  • A necessidade de documentação rastreável;

  • A aplicação das normas RDC 786/2023, ISO 15189:2022, ISO 17025:2017 e diretrizes da CLSI;

  • A integração com sistemas de gestão da qualidade e programas de acreditação.


Dessa forma, a verificação lote a lote se consolida como prática indispensável para garantir a integridade dos resultados laboratoriais e a segurança dos pacientes atendidos.

Referências

  1. ANVISA. Resolução da Diretoria Colegiada – RDC nº 786, de 15 de março de 2023. Dispõe sobre os requisitos técnicos e boas práticas para o funcionamento de laboratórios clínicos. Diário Oficial da União, Brasília, 16 mar. 2023.

  2. INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR STANDARDIZATION. ISO 15189:2022 – Medical laboratories – Requirements for quality and competence. Geneva: ISO, 2022.

  3. INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR STANDARDIZATION. ISO/IEC 17025:2017 – General requirements for the competence of testing and calibration laboratories. Geneva: ISO, 2017.

  4. CLINICAL AND LABORATORY STANDARDS INSTITUTE (CLSI). EP26-A – User Evaluation of Between-Reagent Lot Variation. Wayne, PA: CLSI, 2013.

  5. CLINICAL AND LABORATORY STANDARDS INSTITUTE (CLSI). C62-A – Evaluation of Matrix Effects. Wayne, PA: CLSI, 2016.

  6. CLINICAL AND LABORATORY STANDARDS INSTITUTE (CLSI). EP15-A3 – User Verification of Precision and Estimation of Bias. Wayne, PA: CLSI, 2014.

  7. CLINICAL AND LABORATORY STANDARDS INSTITUTE (CLSI). EP09-A3 – Measurement Procedure Comparison and Bias Estimation. Wayne, PA: CLSI, 2013.

  8. SOCIEDADE BRASILEIRA DE ANÁLISES CLÍNICAS (SBAC). Manual de Requisitos do Sistema Nacional de Acreditação – DICQ, versão 2023. São Paulo: SBAC, 2023.

  9. SOCIEDADE BRASILEIRA DE PATOLOGIA CLÍNICA / MEDICINA LABORATORIAL (SBPC/ML). Manual de Requisitos do PALC, 2023.

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