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Lesão Renal Aguda

A lesão renal aguda (LRA) constitui um problema de saúde de grande relevância, caracterizado pela redução abrupta da função renal em um período de horas a dias, levando ao acúmulo de produtos nitrogenados e alterações hidroeletrolíticas e ácido-básicas (Kellum et al., 2012). O reconhecimento precoce da LRA é essencial para a instituição de medidas terapêuticas eficazes, visando reduzir mortalidade e complicações. Nesse contexto, os exames laboratoriais desempenham papel central no diagnóstico, acompanhamento e estratificação da gravidade da doença.

ilustração de rim

Epidemiologia e Importância Clínica da LRA

A incidência da LRA varia segundo o cenário clínico, sendo mais comum em pacientes hospitalizados, especialmente em unidades de terapia intensiva (UTI). Estudos apontam que cerca de 5 a 7% dos pacientes hospitalizados desenvolvem LRA, enquanto em UTI esse percentual pode ultrapassar 30% (Hoste et al., 2015). A mortalidade associada à condição é elevada, alcançando até 50% em casos graves, sobretudo quando há necessidade de suporte dialítico (Mehta et al., 2016).

A LRA está associada não apenas a desfechos imediatos, mas também a longo prazo, incluindo risco aumentado de progressão para doença renal crônica (DRC) e maior incidência de eventos cardiovasculares (Chawla et al., 2017).


Fisiopatologia da Lesão Renal Aguda

A LRA pode resultar de diversas agressões aos rins, classificadas em pré-renais, renais e pós-renais. As causas pré-renais incluem hipovolemia, choque e insuficiência cardíaca. As causas renais estão relacionadas a insultos diretos ao parênquima, como necrose tubular aguda, glomerulonefrites e nefrites intersticiais. As causas pós-renais resultam de obstrução do trato urinário, como hiperplasia prostática ou litíase (Bellomo et al., 2012).

Independentemente da etiologia, os mecanismos fisiopatológicos envolvem alterações hemodinâmicas, inflamação, apoptose e estresse oxidativo, culminando na perda da capacidade de filtração glomerular.


Critérios Diagnósticos: RIFLE, AKIN e KDIGO

Ao longo dos anos, diferentes consensos foram estabelecidos para padronizar o diagnóstico da LRA. O critério RIFLE (Risk, Injury, Failure, Loss, End-stage) foi um dos primeiros, proposto em 2004, baseando-se em variações da creatinina sérica e do volume urinário (Bellomo et al., 2004). Posteriormente, o critério AKIN (Acute Kidney Injury Network) refinou essa classificação, enfatizando alterações da creatinina em 48 horas (Mehta et al., 2007).

Mais recentemente, a diretriz KDIGO (Kidney Disease: Improving Global Outcomes), publicada em 2012, consolidou os avanços anteriores e tornou-se o padrão internacionalmente aceito para definição e estadiamento da LRA. Conforme o KDIGO, considera-se LRA a elevação da creatinina sérica em ≥ 0,3 mg/dL em 48 horas, ou aumento ≥ 1,5 vezes em até 7 dias, ou ainda pela redução do volume urinário (< 0,5 mL/kg/h por 6 horas). Além disso, o KDIGO estratifica a gravidade da LRA em três estágios:

  • Estágio 1, caracterizado por aumento da creatinina sérica de 1,5 a 1,9 vezes em relação ao basal ou elevação ≥ 0,3 mg/dL;

  • Estágio 2, quando a creatinina aumenta de 2,0 a 2,9 vezes;

  • Estágio 3, definido por aumento ≥ 3 vezes ou creatinina sérica ≥ 4,0 mg/dL, ou necessidade de terapia renal substitutiva. Os critérios relacionados ao débito urinário seguem a mesma lógica, sendo considerados indicadores independentes de gravidade. Essa padronização facilita a comparação entre estudos, a tomada de decisão clínica e o prognóstico do paciente (KDIGO, 2012).


Exames Laboratoriais na LRA

Creatinina Sérica

A creatinina sérica é o exame mais utilizado no diagnóstico e monitoramento da função renal. Trata-se de um produto do metabolismo muscular, eliminado quase exclusivamente pelos rins.

Apesar de amplamente empregado, possui limitações, como variações influenciadas por massa muscular, idade, sexo e hidratação (Perrone et al., 1992). Ademais, a elevação da creatinina não reflete imediatamente a queda da taxa de filtração glomerular (TFG), podendo haver atraso de até 48 horas entre a injúria renal e a alteração laboratorial.


Ureia Sérica

A ureia é outro marcador clássico da função renal, resultado do metabolismo proteico hepático. Sua dosagem é útil no acompanhamento, embora seja fortemente influenciada por fatores extrarrenais, como dieta, sangramento digestivo e catabolismo (Waikar et al., 2012).


Taxa de Filtração Glomerular (TFG)

A TFG estimada, comumente calculada pelas equações MDRD (Modification of Diet in Renal Disease) e CKD-EPI (Chronic Kidney Disease Epidemiology Collaboration), é amplamente utilizada em doença renal crônica. No entanto, na LRA seu uso é limitado, dada a não linearidade da relação entre creatinina e TFG em situações agudas (Levey et al., 2009).


Exame de Urina (EAS)

O exame de urina tipo I (EAS) é ferramenta diagnóstica essencial, auxiliando na diferenciação de causas pré-renais, renais e pós-renais. Em situações de LRA de origem pré-renal, o EAS costuma ser praticamente normal, podendo revelar urina concentrada com alta osmolaridade e ausência de sedimento patológico relevante.

Já nas causas renais intrínsecas, como necrose tubular aguda, é comum encontrar cilindros granulosos, células epiteliais tubulares e proteinúria discreta. Em quadros de glomerulonefrites, observa-se hematúria com hemácias dismórficas, cilindros hemáticos e proteinúria significativa.

Por sua vez, nas causas pós-renais, o exame pode revelar hematúria microscópica, cristais ou leucocitúria, associados a sinais de obstrução. Assim, a análise detalhada do sedimento urinário fornece pistas valiosas para a diferenciação etiológica da LRA, complementando a avaliação clínica e outros exames laboratoriais (Perazella, 2003).


Frações de Excreção de Eletrólitos

A fração de excreção de sódio (FeNa) é um método clássico para diferenciar LRA pré-renal (<1%) de necrose tubular aguda (>2%). No entanto, sua interpretação deve considerar o uso de diuréticos e outras condições que possam alterar a excreção de eletrólitos. A fração de excreção de ureia surge como alternativa nesses cenários, com valores <35% sugerindo pré-renal (Carvounis et al., 2002).


Biomarcadores Emergentes

Nos últimos anos, diversos biomarcadores têm sido estudados como ferramentas para o diagnóstico precoce da LRA, destacando-se a NGAL (lipocalina associada à gelatinase de neutrófilos), a KIM-1 (molécula de lesão renal tipo 1) e a cistatina C. Esses marcadores apresentam maior sensibilidade e especificidade para detectar injúrias renais em fases iniciais, antes mesmo da elevação da creatinina (Parikh et al., 2011).


Limitações e Desafios dos Exames Laboratoriais

Apesar da ampla utilização, os exames laboratoriais tradicionais apresentam limitações significativas, principalmente no diagnóstico precoce da LRA. A creatinina, por exemplo, pode se manter dentro da normalidade por horas ou dias após a injúria renal. Da mesma forma, a ureia sofre influência de variáveis extrarrenais, comprometendo sua acurácia (Waikar & Bonventre, 2009).

O desafio atual reside na incorporação de biomarcadores emergentes à prática clínica, equilibrando custo, disponibilidade e validação em diferentes populações.


Integração Clínica: Exames Laboratoriais, Imagem e Avaliação Clínica

O diagnóstico da LRA não deve se basear exclusivamente em um exame isolado, mas sim em uma abordagem integrada. A análise de exames laboratoriais deve ser associada à história clínica, exame físico e, quando necessário, exames de imagem, como ultrassonografia, fundamentais para identificar causas obstrutivas.


Considerações Finais

A lesão renal aguda representa um desafio clínico de alta prevalência e gravidade. Os exames laboratoriais, em especial a creatinina sérica, permanecem como ferramentas centrais no diagnóstico, embora apresentem limitações. O desenvolvimento e a validação de biomarcadores emergentes representam avanço promissor para o diagnóstico precoce, com potencial impacto na redução da mortalidade e morbidade associadas à LRA.


Referências

  • BELL0MO, R. et al. Acute renal failure: definition, outcome measures, animal models, fluid therapy and information technology needs: the Second International Consensus Conference of the Acute Dialysis Quality Initiative (ADQI) Group. Critical Care, v. 8, n. 4, p. R204-R212, 2004.

  • BELLOMO, R.; KELLUM, J. A.; RONCO, C. Acute kidney injury. Lancet, v. 380, n. 9843, p. 756-766, 2012.

  • CARVOUNIS, C. P. et al. Utility of the fractional excretion of urea in the differential diagnosis of acute renal failure. Kidney International, v. 62, n. 6, p. 2223-2229, 2002.

  • CHAWLA, L. S. et al. Acute kidney injury and chronic kidney disease as interconnected syndromes. New England Journal of Medicine, v. 371, p. 58-66, 2017.

  • HOSTE, E. A. J. et al. Epidemiology of acute kidney injury in critically ill patients: the multinational AKI-EPI study. Intensive Care Medicine, v. 41, p. 1411-1423, 2015.

  • KDIGO. Clinical Practice Guideline for Acute Kidney Injury. Kidney International Supplements, v. 2, n. 1, p. 1-138, 2012.

  • LEVEY, A. S. et al. A new equation to estimate glomerular filtration rate. Annals of Internal Medicine, v. 150, n. 9, p. 604-612, 2009.

  • MEHTA, R. L. et al. Acute Kidney Injury Network: report of an initiative to improve outcomes in acute kidney injury. Critical Care, v. 11, n. 2, p. R31, 2007.

  • MEHTA, R. L. et al. International Society of Nephrology's 0by25 initiative for acute kidney injury (zero preventable deaths by 2025): a human rights case for nephrology. Lancet, v. 385, n. 9987, p. 2616-2643, 2016.

  • PARIKH, C. R. et al. Biomarkers of acute kidney injury: early diagnosis, pathogenesis, and recovery. Journal of the American Society of Nephrology, v. 22, n. 5, p. 1037-1045, 2011.

  • PERAZELLA, M. A. The urine sediment as a biomarker of kidney disease. American Journal of Kidney Diseases, v. 42, n. 4, p. 802-829, 2003.

  • PERRONE, R. D.; MADIAS, N. E.; LEVEY, A. S. Serum creatinine as an index of renal function: new insights into old concepts. Clinical Chemistry, v. 38, n. 10, p. 1933-1953, 1992.

  • WAIKAR, S. S.; BONVENTRE, J. V. Creatinine kinetics and the definition of acute kidney injury. *Journal.

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