Lesão Renal Aguda
- Carlos Wallace

- 19 de ago.
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A lesão renal aguda (LRA) constitui um problema de saúde de grande relevância, caracterizado pela redução abrupta da função renal em um período de horas a dias, levando ao acúmulo de produtos nitrogenados e alterações hidroeletrolíticas e ácido-básicas (Kellum et al., 2012). O reconhecimento precoce da LRA é essencial para a instituição de medidas terapêuticas eficazes, visando reduzir mortalidade e complicações. Nesse contexto, os exames laboratoriais desempenham papel central no diagnóstico, acompanhamento e estratificação da gravidade da doença.

Epidemiologia e Importância Clínica da LRA
A incidência da LRA varia segundo o cenário clínico, sendo mais comum em pacientes hospitalizados, especialmente em unidades de terapia intensiva (UTI). Estudos apontam que cerca de 5 a 7% dos pacientes hospitalizados desenvolvem LRA, enquanto em UTI esse percentual pode ultrapassar 30% (Hoste et al., 2015). A mortalidade associada à condição é elevada, alcançando até 50% em casos graves, sobretudo quando há necessidade de suporte dialítico (Mehta et al., 2016).
A LRA está associada não apenas a desfechos imediatos, mas também a longo prazo, incluindo risco aumentado de progressão para doença renal crônica (DRC) e maior incidência de eventos cardiovasculares (Chawla et al., 2017).
Fisiopatologia da Lesão Renal Aguda
A LRA pode resultar de diversas agressões aos rins, classificadas em pré-renais, renais e pós-renais. As causas pré-renais incluem hipovolemia, choque e insuficiência cardíaca. As causas renais estão relacionadas a insultos diretos ao parênquima, como necrose tubular aguda, glomerulonefrites e nefrites intersticiais. As causas pós-renais resultam de obstrução do trato urinário, como hiperplasia prostática ou litíase (Bellomo et al., 2012).
Independentemente da etiologia, os mecanismos fisiopatológicos envolvem alterações hemodinâmicas, inflamação, apoptose e estresse oxidativo, culminando na perda da capacidade de filtração glomerular.
Critérios Diagnósticos: RIFLE, AKIN e KDIGO
Ao longo dos anos, diferentes consensos foram estabelecidos para padronizar o diagnóstico da LRA. O critério RIFLE (Risk, Injury, Failure, Loss, End-stage) foi um dos primeiros, proposto em 2004, baseando-se em variações da creatinina sérica e do volume urinário (Bellomo et al., 2004). Posteriormente, o critério AKIN (Acute Kidney Injury Network) refinou essa classificação, enfatizando alterações da creatinina em 48 horas (Mehta et al., 2007).
Mais recentemente, a diretriz KDIGO (Kidney Disease: Improving Global Outcomes), publicada em 2012, consolidou os avanços anteriores e tornou-se o padrão internacionalmente aceito para definição e estadiamento da LRA. Conforme o KDIGO, considera-se LRA a elevação da creatinina sérica em ≥ 0,3 mg/dL em 48 horas, ou aumento ≥ 1,5 vezes em até 7 dias, ou ainda pela redução do volume urinário (< 0,5 mL/kg/h por 6 horas). Além disso, o KDIGO estratifica a gravidade da LRA em três estágios:
Estágio 1, caracterizado por aumento da creatinina sérica de 1,5 a 1,9 vezes em relação ao basal ou elevação ≥ 0,3 mg/dL;
Estágio 2, quando a creatinina aumenta de 2,0 a 2,9 vezes;
Estágio 3, definido por aumento ≥ 3 vezes ou creatinina sérica ≥ 4,0 mg/dL, ou necessidade de terapia renal substitutiva. Os critérios relacionados ao débito urinário seguem a mesma lógica, sendo considerados indicadores independentes de gravidade. Essa padronização facilita a comparação entre estudos, a tomada de decisão clínica e o prognóstico do paciente (KDIGO, 2012).
Exames Laboratoriais na LRA
Creatinina Sérica
A creatinina sérica é o exame mais utilizado no diagnóstico e monitoramento da função renal. Trata-se de um produto do metabolismo muscular, eliminado quase exclusivamente pelos rins.
Apesar de amplamente empregado, possui limitações, como variações influenciadas por massa muscular, idade, sexo e hidratação (Perrone et al., 1992). Ademais, a elevação da creatinina não reflete imediatamente a queda da taxa de filtração glomerular (TFG), podendo haver atraso de até 48 horas entre a injúria renal e a alteração laboratorial.
Ureia Sérica
A ureia é outro marcador clássico da função renal, resultado do metabolismo proteico hepático. Sua dosagem é útil no acompanhamento, embora seja fortemente influenciada por fatores extrarrenais, como dieta, sangramento digestivo e catabolismo (Waikar et al., 2012).
Taxa de Filtração Glomerular (TFG)
A TFG estimada, comumente calculada pelas equações MDRD (Modification of Diet in Renal Disease) e CKD-EPI (Chronic Kidney Disease Epidemiology Collaboration), é amplamente utilizada em doença renal crônica. No entanto, na LRA seu uso é limitado, dada a não linearidade da relação entre creatinina e TFG em situações agudas (Levey et al., 2009).
Exame de Urina (EAS)
O exame de urina tipo I (EAS) é ferramenta diagnóstica essencial, auxiliando na diferenciação de causas pré-renais, renais e pós-renais. Em situações de LRA de origem pré-renal, o EAS costuma ser praticamente normal, podendo revelar urina concentrada com alta osmolaridade e ausência de sedimento patológico relevante.
Já nas causas renais intrínsecas, como necrose tubular aguda, é comum encontrar cilindros granulosos, células epiteliais tubulares e proteinúria discreta. Em quadros de glomerulonefrites, observa-se hematúria com hemácias dismórficas, cilindros hemáticos e proteinúria significativa.
Por sua vez, nas causas pós-renais, o exame pode revelar hematúria microscópica, cristais ou leucocitúria, associados a sinais de obstrução. Assim, a análise detalhada do sedimento urinário fornece pistas valiosas para a diferenciação etiológica da LRA, complementando a avaliação clínica e outros exames laboratoriais (Perazella, 2003).
Frações de Excreção de Eletrólitos
A fração de excreção de sódio (FeNa) é um método clássico para diferenciar LRA pré-renal (<1%) de necrose tubular aguda (>2%). No entanto, sua interpretação deve considerar o uso de diuréticos e outras condições que possam alterar a excreção de eletrólitos. A fração de excreção de ureia surge como alternativa nesses cenários, com valores <35% sugerindo pré-renal (Carvounis et al., 2002).
Biomarcadores Emergentes
Nos últimos anos, diversos biomarcadores têm sido estudados como ferramentas para o diagnóstico precoce da LRA, destacando-se a NGAL (lipocalina associada à gelatinase de neutrófilos), a KIM-1 (molécula de lesão renal tipo 1) e a cistatina C. Esses marcadores apresentam maior sensibilidade e especificidade para detectar injúrias renais em fases iniciais, antes mesmo da elevação da creatinina (Parikh et al., 2011).
Limitações e Desafios dos Exames Laboratoriais
Apesar da ampla utilização, os exames laboratoriais tradicionais apresentam limitações significativas, principalmente no diagnóstico precoce da LRA. A creatinina, por exemplo, pode se manter dentro da normalidade por horas ou dias após a injúria renal. Da mesma forma, a ureia sofre influência de variáveis extrarrenais, comprometendo sua acurácia (Waikar & Bonventre, 2009).
O desafio atual reside na incorporação de biomarcadores emergentes à prática clínica, equilibrando custo, disponibilidade e validação em diferentes populações.
Integração Clínica: Exames Laboratoriais, Imagem e Avaliação Clínica
O diagnóstico da LRA não deve se basear exclusivamente em um exame isolado, mas sim em uma abordagem integrada. A análise de exames laboratoriais deve ser associada à história clínica, exame físico e, quando necessário, exames de imagem, como ultrassonografia, fundamentais para identificar causas obstrutivas.
Considerações Finais
A lesão renal aguda representa um desafio clínico de alta prevalência e gravidade. Os exames laboratoriais, em especial a creatinina sérica, permanecem como ferramentas centrais no diagnóstico, embora apresentem limitações. O desenvolvimento e a validação de biomarcadores emergentes representam avanço promissor para o diagnóstico precoce, com potencial impacto na redução da mortalidade e morbidade associadas à LRA.
Referências
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